Preciso começar com uma confissão. Existem poucas coisas que me incomodam, mas se tem algo que o faz é a ideia de que a minha história é um conto-de-fadas do futebol.
Eu sei que quando as pessoas dizem que sou um tipo de “Cinderelo”, é para ser um elogio. E eu até gosto, mas, para ser honesto, não sinto como um elogio, por que não é verdade.
Não foi por um passe de mágica ou por ter ganhado em alguma loteria que eu acabei em um dos maiores clubes do mundo. A razão para eu ser um jogador do Liverpool é a mesma razão de ser o capitão da seleção do meu país: eu trabalhei feito um condenado para estar onde estou, e, por fazer isso, consegui fazer o melhor que eu pude do tanto de talento que possuo.

E por que isso importa? Na verdade, não importa para mim como indivíduo. Provavelmente não importa nem para a minha família. Isso só importa porque existem sabe-se lá quantos pequenos Andy Robertsons por aí. Crianças que estão tendo que lidar com todas as dificuldades de convencer alguém de que seu talento merece uma chance. Crianças que só precisam de uma oportunidade para serem tudo que podem ser.
Crianças que poderão desistir se pensarem que somente um conto-de-fadas pode salvá-las.
Eu nunca quis ser um ídolo, mas se for para ser ídolo por alguma coisa, que seja por isso – se você não desistir, se você seguir acreditando em si mesmo, ainda que os outros duvidem, você consegue chegar lá. Você pode mostrar que é bom o bastante.
Agora que eu tenho dois filhos para criar, essa mensagem é ainda mais importante. Eu não quero que pensem que seu pai teve sorte na vida. Preciso que entendam que qualquer que seja o potencial que tenham, ele só será atingido se realmente se esforçarem para isso. Contos-de-fada? Isso é história para boi dormir.

Uma das melhores coisas do futebol é que existem milhares de pessoas como eu. A maioria das pessoas só chegam ao topo por que são muito focadas. O time do Liverpool do qual faço parte conta com muitos jogadores como esses.
Pegue Virgil van Dijk, por exemplo, o melhor zagueiro do mundo. Quantos treinadores devem ter olhado para ele e pensado que ele não seria destinado a chegar onde chegou? Ele mesmo te contará que não foram poucos.
Mo Salah, um dos melhores finalizadores do futebol atual, já foi descartado por não ser bom o bastante para jogar num time grande da Premier League.
Jordan Henderson deve ter perdido a conta de quantas vezes teve sua habilidade questionada – apesar de nunca por alguém que teve sorte o bastante de trabalhar com ele – e aqui está, prestes a capitanear seu time numa segunda final de Champions League consecutiva.
Eu poderia continuar listando, eu realmente poderia. Se essas histórias fossem todas contos-de-fada, teríamos mais que Hans Christian Andersen (escritor dinamarquês, autor das famosas histórias “O Patinho Feio” e “A Pequena Sereia”). Elas não são. São todas exemplos de trabalho duro e comprometimento em fazer a diferença.
O mesmo se aplica a nós como um time e ao Liverpool como um clube. Nós estamos onde estamos por causa de nossa ética de trabalho e nossa fé de que praticamente tudo é possível. Essa é a razão pela qual conseguimos voltar de um 3-0 contra um ótimo time do Barcelona. Nós não esperamos o destino fazer a sua parte e torcemos para ser a nosso favor, nós forçamos o destino a ir para o nosso lado e nem mesmo Lionel Messi, o melhor jogador que já vi, conseguiu impedir isso.

Talvez existissem pessoas fora de Liverpool que pensavam que não conseguiríamos ir à final. Para ser justo, eles tinham muitas razões para pensarem dessa maneira, especialmente depois de termos nossas bundas chutadas no Camp Nou. Contudo, havia alguma coisa naquele primeiro jogo que nos deu confiança. Nós tínhamos visto o bastante para sabermos que podíamos competir com o Barcelona. O problema foi que todos os momentos decisivos foram contra nós, e nós sabíamos que, com a ajuda de Anfield, e momentum poderia ser revertido.
Se eu fosse um cara mais empático, eu provavelmente sentiria pena dos jogadores adversários que precisam jogar em Anfield nas noites europeias. O que eles encontram naquele estádio é quase injusto. Aquela mistura intoxicante de história, paixão e fé inabalável é uma vantagem e tanto para se ter, e é por isso que o Liverpool superou as expectativas diversas vezes, e é por isso que a torcida sabia que o que parece impossível é possível. Eles já viram coisas assim antes, então por que não esperar que aconteçam novamente?
Nós sabíamos que tínhamos uma chance quando estávamos no vestiário esperando para sair para o jogo. Sabíamos que o técnico acreditava em nós, ele havia nos dito. Nós sabíamos que a torcida acreditava em nós, podíamos ouvi-los. Meu Deus, nós podíamos ouvi-los bem. E, mais que tudo, sabíamos que confiávamos em nós mesmos e uns nos outros.
É por isso que quando Divock marcou no sétimo minuto, eu não só acreditava. Eu sabia. Eu sabia o que estava vindo – o que o Anfield iria criar. Eu espero que isso não soe desrespeitoso de maneira alguma, porque eu não poderia ter mais respeito pelo Barcelona, mas aquela noite não era sobre eles. Era sobre nós. Nós estávamos embalados pela torcida e nossa fome de jogo estava em outro nível.
Não estava fácil se sentir assim nos minutos logo depois do primeiro jogo, quando Messi havia feito mágica. Naquele momento, nos sentimos chateados, o que provavelmente era inevitável. Apesar de estarmos em Barcelona, Madri não poderia estar mais longe. E aí o técnico entrou no vestiário, pulando e com sua marca registrada – seu enorme sorriso – estampada no rosto.
“Rapazes, rapazes, rapazes!”, ele disse, “Nós não somos o melhor time do mundo. Agora vocês sabem disso. Talvez eles sejam! Mas quem liga? Quem se importa! Nós ainda podemos derrotar o melhor time do mundo. Nós vamos de novo”.
Talvez eu tenha levado um segundo, ou talvez toda a duração do vôo até Liverpool, para acreditar nele. Mas, no panorama geral, foi o momento que mudou tudo para nós. No futebol, todo mundo sempre fala sobre fé. Todos os times falam que tiveram fé depois de uma virada. Mas esse não é o caso em todos os clubes. Não é, apenas. O técnico, é ele que começa com tudo. Ele acende o pavio e Anfield faz o que sempre fez.
Eu lembro do aquecimento, o lugar inteiro estava pulando. Parecia que todos estavam em cima de nós, então só Deus sabe como foi para os jogadores do Barcelona. Quando Div marcou tão cedo, você conseguia ver em seus olhos. Os fãs ficaram malucos. Eu não conseguia ouvir mais nada. Lembro de olhar para Hendo, Milly e Virgil – aqueles caras mal sorriram.
Eles só acenaram para o público, como quem dissesse: “nós vamos de novo”.
Eu acho que aquela noite vai entrar para a história. Todos que amam esse clube vão se lembrar de onde estavam e com quem estavam vendo o jogo. Para mim, o que tornou aquela noite ainda mais especial foi lembrar de onde eu saí para estar ali naquele momento. Eu sabia como tinha sido e sabia como, se eu tivesse dado ouvidos ao que falavam, eu nunca teria chegado nem perto de Anfield – exceto talvez como um fã de futebol que queria entender o que todo aquele berreiro significava.

Eu cresci indo ao Celtic Park com minha mãe, meu pai e meu irmão. Nós tínhamos quatro tickets de temporada. Meu irmão e eu tínhamos pôsteres de Henrik Larsson em todos os lugares. Lenda. Uma lenda. Eu tinha inclusive papel de parede verde. O Celtic era uma parte da nossa família. Era assim e, até hoje, é assim. Eu me juntei aos time infantil quando era pequeno, correndo pelo campo como se estivesse no Celtic Park.
No começo, eu joguei no ataque por um tempo. Meu pai até me pagava duas libras por gol. Acho que cheguei a fazer 75 libras em uma temporada – diferentemente de agora, onde eu provavelmente acabaria devendo dinheiro para ele, visto que eu não sou exatamente o Salah chutando para o gol. Com o tempo, recuei para o meio-de-campo, e em minha ultima temporada no Celtic eu revezei entre o meio e a lateral-esquerda. Eles trouxeram um novo diretor-técnico naquele ano e aparentemente eu não fazia mais parte dos planos por algum motivo.
Em minha entrevista de final de ano, os treinadores me disseram que eu não voltaria. Eu tinha 15 anos. Faltava um ano para eu assinar um contrato profissional. Um ano para ser um jogador do Celtic de verdade. Mas tinha acabado, do nada, e doeu demais.
Minha mãe odiava nos ver chorar. Mas ela me viu derramar várias lágrimas naquele dia. Eu lembro que ela pegou um curry do meu restaurante favorito para tentar me animar. Era no meio da semana, também. Eu quase nunca podia comer curry no meio da semana. Eu nem podia comer muito curry, na verdade. Esse era o tanto que ela sabia que eu estava machucado.
Foi difícil, mas ainda bem que minha família sempre esteve do meu lado. Eles me deixaram continuar perseguindo meu sonho, mesmo quando pareceu ser inútil seguir sonhando. Decidimos tentar mais uma vez com o Queens Park em 2010. Um clube menor de Glasgow, para dizer o mínimo. A vida era diferente lá. Eu estava fazendo 6 libras por noite. Era o tipo de clube da classe trabalhadora, e muitos jogadores tinham outros empregos durante o dia e jogavam durante a noite. Não era diferente para mim.
Eu fiz de tudo para segurar a onda. Fiz um pouco de jardinagem, fiz limpeza para o time titular, e até trabalhei no Hampden Park durante as partidas da Escócia. Meus pais me disseram que se eu não começasse a me encontrar no futebol naquele ano, eu deveria começar a pensar em ir para a universidade. Então eu coloquei tudo em ficar melhor e melhor todos os dias. Aquilo foi trabalho de verdade, com pressão de verdade.
As pessoas sempre me perguntam sobre a pressão de jogar pelo Liverpool. E ela existe, acredite, eu sinto. Mas tem essa pressão, e tem a pressão de jogar pela sua vida – sabendo que se não der certo, você tem que abrir mão de fazer o que você ama. Essa é a pior pressão que já senti. E foi naquela situação que eu realmente comecei a acreditar em mim mesmo – talvez pela primeira vez na minha vida. Eu não tinha outra escolha.
O Dundee United fez uma proposta alguns anos depois, e ela me permitiu fazer o que eu gostava todos os dias e ganhar dinheiro o bastante para não precisar de outros empregos. Contudo, acho que o que eu passei me ajudou a entender pelo que as pessoas passam no dia-a-dia, fora da bolha do futebol. Quando tive a chance de jogar na Premier League pelo Hull City em 2014, eu já tinha vivido bastante da vida real. Minhas ambições sempre foram de me tornar um bom jogador da SPL (Scottish Premier League, a primeira divisão escocesa). Quando eu estava jardinando e esvaziando lixeiras, eu nunca pensei que um dia estaria jogando a Champions League, especialmente pelo Liverpool.
É engraçado, na verdade. Alguns times me chamaram quando eu estava na pré-temporada com o Hull em 2017, mas eu realmente não estava interessado. Minha mulher estava grávida e nós estávamos no processo de arrumar tudo para a grande chegada – essa era a nossa prioridade número 1, como todo o casal de futuros pais.
E aí eu ouvi que o Liverpool me queria.

O Liverpool.
Quando você ouve que o Liverpool te quer, você liga de volta para o seu agente em 5 segundos. Eu não poderia ter assinado o contrato mais rápido, para ser honesto.
Entretanto, eu tive uma dose de realidade bem rápido. O exame médico levou 2 dias, e foi brutal. Minha dieta era estranha pois o time médico tinha que realizar vários testes para ter certeza que eu estava em forma e que continuaria em forma. Depois que passei por essa parte, tive que ir a Melwood fazer um teste de lactose. Eu estava correndo com Danny Ings e, depois de algumas voltas na pista, eu senti que tinha algo errado com meu estômago. Eu sabia que coisas ruins aconteceriam, mas o que eu podia fazer? Continuei correndo. Alguns minutos depois, lá estava eu, de joelhos, vomitando minhas tripas no campo de Melwood.
Esse lugar abençoado. Esse lugar onde lendas haviam treinado. King Kenny. Rushie. Stevie Gerrard. E ali estava eu, um moleque qualquer de Glasgow, vomitando na frente da equipe médica do Liverpool.
Se primeiras impressões contam, só Deus sabe o que pensaram de mim.
No dia seguinte, eu encontrei o técnico e ouvi ele rindo a mais de um quilômetro. Evidentemente, ele tinha ouvido acerca do meu teste. Eu viro e me deparo com ele andando na minha direção, massageando a barriga e apontado para mim. O pessoal atrás dele estava rindo também.
E aí ele me deu um abração. Depois disso, eu relaxei um pouco.
Todo o elenco fez com que eu me sentisse bem recebido naquela semana, mas, honestamente, levou um tempo para eu conseguir internalizar o que significa ser um jogador do Liverpool. Eu vestia a camisa vermelha. Eu usava a camisa de treino do clube em todos os lugares que nós íamos. Eu estava usando em casa. Mas ainda não me sentia um jogador do Liverpool.
Eu estava dentro e fora dos titulares por alguns meses. O sistema de jogo era complexo e eu estava trabalhando duro nos treinamentos para aprendê-lo, para entender o que o técnico queria de seus laterais. Quando eu não via meu nome entre os titulares, minha confiança em mim mesmo começava a arrefecer. Contudo, todas as minhas experiências de vida, e os tempos difíceis que passei no Celtic e no Queens Park, me ensinaram a ser paciente.
Então eu só voltava para os treinos todos os dias e tentava chamar a atenção do técnico ao trabalhar mais duro que todo o resto. Eventualmente, ele notou. Acho que ele só estava esperando que eu entendesse – que me sentisse como um jogador do Liverpool e tivesse confiança. Quando eu entrei nos titulares, eu estava pronto.
Nossa torcida têm sido incrível para mim desde que cheguei. Ano passado eles nos levaram o caminho todo até Kiev e estiveram conosco depois daquele apito final. Aquela noite foi difícil, e eu acho que você nunca supera uma partida como aquela. Você só aprende a viver com aquela memória. Eu lembro do silêncio no vestiário naquela noite, eu lembro do doloroso vôo de volta para casa. E eu lembro de ouvir “You’ll Never Walk Alone” depois do apito final.

Os torcedores cantaram com o coração, e isso fica com você.
Chegamos em Melwood às 4 da manhã, e o técnico deu um abraço em todos, nos contando como estava orgulhoso do time. E ele também nos disse que nós voltaríamos. De algum jeito, depois de uma longa estrada… depois de ter estado perdendo de 3-0 para o Barcelona… ele estava certo.
Nós estamos de volta.
Todos nós sabemos o que essa oportunidade significa. Essa foi uma temporada incrível, cheia de altos e baixos e momentos emocionais. Mas, para mim, também foi a chance de dar um passo para trás e ver o quadro inteiro da situação. De ter sido mandado embora do Celtic e chorar em cima do meu curry favorito, até estar ganhando 6 libras por noite na Escócia, até ser contratado pelo Liverpool e vestir aquela camisa vermelha, mal acreditando que era verdade.
É bom ter mais uma chance nessa final. Ninguém merece mais que nossos torcedores, que nos apoiaram durante os tempos bons e ruins. Mas, como nós, eles também sabem que disputaremos com um grande time, os Spurs. Mauricio Pochettino e seus jogadores estarão tão determinados quanto nós a fazer algo especial numa final como essa.
A coisa que mais importa é que o nosso destino está nas nossas mãos. Sabemos disso. E se tem algo que posso garantir sobre esse time, sobre esse grupo de jogadores, é que nada vai nos impedir de tentar fazer com que os sonhos de nossos torcedores sejam realizados.
Se isso acontecer, não vai ser um conto-de-fadas.
Vai ser porque nós merecemos”.
Andrew Robertson.